Chovia um pouco e naquela fria tarde de sexta-feira, como em todas as outras, fui almoçar num restaurante perto de casa. Curitiba enfrentava um inverno forte em 2009 e poucas coisas na vida são mais solitárias do que frio e chuva simultâneos. Nesses dias, o Tropo Buono era o meu lugar favorito. Além da culinária caseira e acolhedora, Lala e Cris sempre me tratavam tão bem que, por vezes, cheguei a ir pra lá só pra conversar e tomar um café. É o único restaurante que eu conheço que tem biblioteca, gente inteligente e boa comida. Naquele dia fui tarde, eram umas duas e meia. Entrei com pressa e sentei de costas pra uma única mesa ocupada por três pessoas.
Lala era Laís Pires, conhecida
produtora artística carioca que, assim como eu, foi parar no Paraná por essas
coisas que quase nunca entendemos bem. Falávamos sempre de música, arte,
cultura e da cena popular brasileira. Ela, mais do que eu, tinha muita história
pra contar. Tinha sido responsável por levar vários artistas aos Estados
Unidos, já havia excursionado e produzido Leny Andrade, Beth Carvalho e tantos
outros nomes. Lala, ao saber que eu era pernambucano, sempre me falava do
Romero Lubambo, violonista cuja família morava em Recife, quando engatamos a
primeira conversa e nunca mais paramos. Falando dela me dá vontade de chorar,
de tanto carinho e saudade.
“- Rafa, vem cá. Quero te apresentar um amigo meu”, veio ela até
minha mesa e me puxou, ao ver que eu já tinha terminado o almoço. “Então, esse aqui é o Emílio... Rafa,
Emílio. Emílio, Rafa”. Ah, por isso! Eu bem conhecia aquela voz que ria e falava
na outra mesa, mas não seria indiscreto de olhar pra confirmar. Desde criança eu
já era fã de Emílio Santiago desde que ouvi as famosas Aquarelas. Já tinha ido
a um show dele no Teatro Castro Alves em Salvador e sabia um pouco da sua história
também. Cumprimentei-o com uma boa tarde e saudei os demais que estavam na
mesa.
“-Olá, Emílio. É um prazer, uma honra. A Lala já tinha me falado de
você”.
“-Ah, é?! Mas com esse sotaque, você não é daqui, é?! Lala, pega um café
pro Rafa!”, tratou logo de me deixar à vontade e pediu pro Soca, secretário
dele, puxar uma cadeira. “Obrigado” –
agradeci e sentei ali por umas duas horas.
Emílio tinha ido fazer um show
com a Áurea Martins no Teatro da Caixa. Eram três dias de espetáculo, sexta,
sábado e domingo. E o carinho que ele tinha por Lala era uma coisa linda de se
ver. Ele tinha disso: se gostasse de alguém, elogiava em público até deixar com
vergonha. Outro dia, em um show em Recife, me apresentou ao Lenine e foi
rasgando elogios sobre a minha atuação profissional, de coisas que eu nem
imaginava que sabia de mim. Acho que foi uma das vezes que fiquei mais vaidoso
na vida. O normal seria o inverso! Mas era assim também que falava da Lala. Não
era pra menos, ela o levou pela primeira vez à Nova York, lugar que, de tanto
gostar, até apartamento acabou comprando por lá tempos depois. E era bonito de se
ver como ele gostava dela. Não pude ir na sexta por compromissos acadêmicos,
mas como ele me convidou para os outros dias, apareci no sábado e no domingo. Depois
fomos todos a um bistrô e, quando voltei pra deixa-lo no hotel, recebi um DVD
que já estava dedicado. Tenho guardado aquele momento tão vivo que parece que foi
ontem.
De temperamento forte, mas capaz
de uma generosidade rara, Emílio era capaz muitas vezes de adivinhar a melhor
hora das coisas. Não nos falávamos há uns três meses quando, certa vez, me
ligou umas 11 horas da noite: “-Pernambuquinho,
como você tá? Como andam as coisas por aí? Vi que o tempo em Curitiba está
frio, se cuida hein!”. E estava mesmo frio, uns 4 graus. E aquela lembrança
dele, em breves dois minutos de conversa, foi certeira. Outra vez ele foi fazer
um show em Porto Alegre e antes passou em Curitiba. Peguei-o no aeroporto e
fomos almoçar em Santa Felicidade. Quando estacionei o carro, veio um garotinho
pedir comida pra família e, depois de ajuda-lo, começou a me contar uma história.
Disse que um dia foi fazer compras em um supermercado no Rio e na saída uma
criança pediu algo pra comer. Aquilo mexeu com os brios dele de tal forma que retornou
com o moleque ao supermercado, encheu um carrinho com caixas de leite e outras coisas
e o colocou num táxi para levar até em casa, provando existir a sensibilidade
no homem como existia no intérprete. Contando-me isso foi às lágrimas, e me
levou junto também. Dentre tantas outras milhares histórias, que não caberiam
em um livro.
Outra vez, depois de um show, a
produção do evento fez uma passagem pra chegar até o carro que evitava o
público. Ele soube e fez o inverso, procurou a saída que passava pelo público. Lembro-me
de ter tirado pra lá de cem fotos. Tinha adolescente de 14 e idoso de 70 anos
cantando e dizendo admira-lo. Quem não deve ter gostado foi o motorista, já que
precisou enfrentar a multidão pra que entrássemos no carro...
Emilio tinha o jeito do Rio, o
jeito da noite carioca, de Copacabana. Já me confessou que só moraria em outro
lugar que não Botafogo, onde morava. E era Copacabana, mas tinha que ser na
Atlântica. Senão nada feito. Pra mim, um dos shows mais clássicos e épicos da
história da música brasileira é o dele no Copacabana Palace. Não tem nada mais
carioca, nada mais brasileiro do que Emílio Santiago cantando em Copacabana!
Lembro ainda que, por motivos profissionais, só pude chegar à São Paulo na tarde
da gravação do último DVD dele, o “Só
Danço Samba”. Fui direto pro Citibank Hall, mas nem me preocupei quanto a
perder alguma coisa. Com ele era tudo ao vivo, na hora. Não tinha cerimônia de gravar
e refazer não. Conversando com o Zé Milton (que dirigiu e produziu aquele show)
já depois no camarim, perguntei se tudo tinha ido bem. Ele disse, sorrindo: “Com esse aí? Já tá pronto!”. Almoçamos na tarde seguinte no Copan e, brincando, disse que eu achava que precisaria refazer a faixa 5 (não sabia nem qual era a faixa 5!). E ele, de pronto, perguntou se a gravação do DVD que eu tinha ido tinha sido o dele! Tinha
uma alma incomum, de artista. Os olhos dele brilhavam pelo palco, e ele sempre
brilhava no palco. O The New York Times o elegeu como uma das maiores vozes de
todos os tempos, ao ponto de dizer que a voz de Emílio era mais suave e profunda
que a de Nat King Cole. Imagina! A coroação de uma carreira trilhada passo a
passo, desde os festivais de música e do programa de Flávio Cavalcanti até os
críticos norte-americanos e o Grammy Latino. Uma história maiúscula, do tamanho
do seu talento!
Enfim, em outro patamar ele
sempre esteve, aquela voz nunca podia ser desse mundo. Poucas coisas nessa vida
inexplicável são suficientes pra mim e ter convivido e ser amigo do Emílio é
uma delas. Guardo, como se gravado estivesse, sua voz há 19 dias atrás no telefone: "A vida é bela, Rafa. Só nos resta viver!". A sensação de perda é tão grande que não consigo expressar em
palavras. Aliás, não conseguirei expressar em nada. Nem em tantas palavras, nem
em meias palavras. Anoiteceu, Emílio. Sem você por aqui, agora olho pro céu e vejo como é bom
ver você entre as estrelas na escuridão. Sua voz inconfundível agora é ouvida
pelos anjos, que esperavam você voltar. Hoje o céu é Saigon.
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Emílio Vitalino Santiago, saudades eternas.
* 06/12/1946
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Emílio Vitalino Santiago, saudades eternas.
* 06/12/1946
† 20/03/2013